Mergulhe na vida de Vera Brito, uma renomada artesã cujas bonecas de fibra de bananeira são reconhecidas como tesouros culturais. Explore seu processo artístico e como seu trabalho reflete as narrativas ambientais e culturais de sua cidade natal.
ROTEIRO – 15 – VERA BRITO
JOSI MARINHO – LOCUTORA JOSI MARINHO
DESC – DESCRIÇÃO CRIS XAVIER
TEC – TÉCNICA
TRILHA ABERTURA
JOSI MARINHO – Seja bem-vindo ao Podcast Nossa História, Nossa Memória, realizado com o incentivo do Funcultura, Fundarpe, Secretaria de Cultura e Governo do Estado de Pernambuco.
JOSI MARINHO – Nosso episódio hoje está dedicado a arte. Arte de transformar palha e fibra de bananeiras em lindas bonecas. Bonecas que deram a sua criadora o título de Patrimônio Vivo do município e do estado em que mora.
JOSI MARINHO – Eu sou a jornalista Josi Marinho. Mulher negra, produtora cultural e realizadora desse projeto.
DESC – E eu sou Cris Xavier, mulher negra e produtora cultural. Este podcast conta com recursos de audiodescrição. Importante para contar histórias para pessoas com deficiência. Esse som … (pausa) … Indica que você vai ouvir minha voz descrevendo algo importante do nosso episódio.
JOSI MARINHO – Gente, estamos novamente em Vicência, na zona da mata de Pernambuco. Vicência é um dos principais produtores de banana do estado. Guarda essa informação, que ela vai ser muito útil na nossa conversa. Quem nos recebe é a professora e mestra artesã Vera Lúcia de Oliveira Brito. As mãos dela fazem bonecas como ninguém. Ela criou sua própria técnica e construiu ao longo dos anos um importante legado cultural.
DESC – Mestra Vera Brito é uma simpática senhora de 75 anos, com cabelos castanhos e curtos. Ela nos recebe no terraço de casa, que também podemos chamar de ateliê. Por toda parte é possível encontrar a matéria-prima da sua obra. Nós vamos descobrir já, já. Mas tem muito material espalhado pelo terraço, como renda, bonecas em produção, flores e folhas.
JOSI MARINHO – Vera Brito em 2022 foi eleita Patrimônio Vivo de Vicência. Em 2023 foi eleita Patrimônio Vivo de Pernambuco. Ela também foi professora de turmas primárias e hoje está aposentada. Enquanto criança, o sonho dela era ter uma boneca. Esse sonho foi crucial para desenvolvesse um talento especial. Ela mesma começou a confeccionar suas bonecas. Sabe como? Com poucos recursos, transformou o que via pela frente. Sabe a história das bananeiras? Pois é… Foi a partir do caule, da palha e das fibras de bananeiras, que vera brito desenvolveu a própria técnica de criação de bonecas. E a necessidade de ontem, foi trampolim para os títulos e reconhecimentos de hoje. Mestra, seja muito bem-vinda ao Podcast Nossa História, Nossa Memória.
00:19 – Olha, para mim foi uma grande satisfação em receber esse título. Primeiro, porque eu amo que eu faço; e segundo, por passar esse legado para tantas pessoas, principalmente do meu município. Então, tantos anos de trabalho, o reconhecimento foi muito importante.
JOSI MARINHO – Mestra, para iniciarmos essa conversa… Como a senhora se define?
00:50 – Eu me defino assim: uma pessoa muito feliz em conquistar as pessoas, os amigos. Onde eu chego, já sou reconhecida. Já tenho um legado mais ou menos. Eu espero chegar até lá, que já tenho 74 anos e acredito que já tenho feito muita coisa para ser reconhecida, pra ser feliz pelo que eu faço.
JOSI MARINHO – Uma das especialidades de Vera Brito é produzir bonecas artesanais a partir da fibra da bananeira. Mas antes de chegar nesse ponto, vamos conhecer a história por trás dessa técnica. A pequena vera nasceu numa família muito humilde. O pai dela tinha uma pequena fábrica de doces. A especialidade dele era o nego-bom. Aquele doce feito de banana, açúcar e limão. Uma iguaria da culinária pernambucana. Por ser muito humilde, a pequena vera não tinha bonecas para brincar. A partir daqui ela mesma conta essa história.
05:54 – Eu fazia minhas bonecas de maniva. Maniva é a folha da Mandioca, o tronco da Mandioca; o talo, como se diz. Descascava aqueles nozinhos que ela tem. Ela é oca, tem uma ‘partezinha’ dentro que você pode perfurar. Perfurava, botava um bracinho, botava um pano, enrolava um pano assim, o outro lado do pano, e virava uma boneca. Pintava os olhos dela e ali já era uma boneca. Ou se não, de milho, boneca de milho, também pintei muitas cabecinhas de boneca. Que a boneca de milho tem um cabelo muito grande, né? Aqueles cabelos alourados. Então minhas bonecas eram lindas, porque eram bonecas de milho, eram loiras. E também eu fazia de manga, chupava manga, o caroço da manga lavava bem lavado, as bonecas ficavam bem branquinhas. Ali do caroço eu pintava os olhos, a boca e botava uma sainha, encostado quase no fim do caroço da manga, pra ser também uma boneca.
JOSI MARINHO – Por quanto tempo a senhora cultivou o desejo de ter uma boneca?
07:12 – Ah, isso foi a muitos anos. Até uns 20 e poucos anos eu sonhei em ter uma boneca. A fase de criança todinha, eu desejei ter boneca. E depois eu não podia passar numa loja, mesmo depois de velha. Ainda hoje eu tenho amor a boneca. Quando eu passava pelas Sloper, eu não sei se vocês ainda conheceram a Mesbla, a antiga Mesbla. A Sloper tinha muita boneca bonita E eu parava. Era um sonho tão grande de ter uma boneca, que eu parava para ver, e achava lindo, lindo, lindo, lindo. Eu tinha uma amiga que ela ganhou uma boneca de um padrinho. Isso para mim foi motivo de tristeza, porque eu fiquei com inveja. Eu tinha inveja quando criança, porque a boneca tinha dois dentinhos e eu não tinha boneca. Então isso aí foi uma tristeza tão grande, tão grande, tão grande. Isso aí eu nunca esqueço, tá essa parte aí, eu não vou esquecer nunca. Porque é aquele sonho que teve, uma amiga sua teve e você não teve. Coisa de criança. Hoje em dia isso não existe, quer dizer, para mim não, mas antigamente existiu.
JOSI MARINHO – A gente entende como é. Voltando no tempo, a senhora consegue distinguir de onde veio essa vontade de ter bonecas? O que isso representa pra senhora?
08:24 – Era sentimento de acarinhar, de ter uma filha, de zelar por ela. Eu fazia cozinhado de boneca. Então, cadê a boneca para comer a comida que eu fazia? Mesmo de mentira, mas teria que ter aquela boneca presente para usufruir daquele cozinhado que eu tinha feito. E também a boneca significava um bibelô, uma coisa bonita, uma figura de um bebê. Às vezes até botava no braço, balançava assim, como se fosse uma mãe. Toda mulher quer ter um filho. Então, para mim, o sentimento era de mãe, ter essa boneca, ter essa filha.
TRILHA
JOSI MARINHO – A sua arte de Vera Brito nasceu da necessidade de brincar. A pequena criança nem imaginava que aquelas bonecas, que ela mesmo chamou de feinhas, seriam reconhecidas como arte. Claro que hoje a técnica foi muito aperfeiçoada. Eu aposto que você está curioso para saber como uma bananeira pode se transformar numa boneca.
01;27 – É retirada do pseudocaule, que muita gente no caule. Chama-se pseudocaule, nome científico, que é o tronco. Então retira-se aquele tronco abre aquelas capas, então se torna isso aqui (ela mostra ao entrevistador) são essas faixas aqui que são retiradas do tronco da bananeira.
DESC – Neste momento a mestra pega uma faixa de fibra de bananeira. O caule ou pseudocaule da bananeira possui camadas, palhas, fibras. Quando cortado é possível ver direitinho essas camadas. É quase como a cebola, que possui várias camadas, só que as da bananeira são maiores e mais grossas. A faixa que está nas mãos da mestra já está tratada e lembra muito o papel madeira, só que mais rústico.
01:59 – Ela é assim, é variável, conforme a qualidade da banana ela varia muito. Por exemplo, a banana maçã tem uma textura; a banana vinagre a roxa, tem outra textura; a banana prata tem uma textura também. Então, conforme o tempo de tirar a palha, se for um tempo frio, ela escurece um pouco, porque ela contém uma sacarose e a sacarose produz uma nódoa, então ela fica um pouco escura.
JOSI MARINHO – A palha depois de tratada também se parece com um tecido rústico. Mestra, descreva pra gente a textura e a sensação de pegar nesse material.
03:16 – Ela é um pouco grossinha. Ela é assim, vamos dizer, é nervurada. O avesso dela é liso, mas o direito ela tem nervuras. Então, ela dá um acabamento perfeito em tudo que é feito. Por exemplo, na saia da boneca ela dá um franzido, na roupa dos anjos também, ela dá um volume. Ela é muito boa de ser trabalhada. É melhor do que a palha do Milho. Ela é mais leve e ela é mais flexível. A palha do milho é muito seca. Eu trabalho também com a palha do milho, mas a palha da bananeira fibra, ela é muito melhor de trabalhar.
JOSI MARINHO – E como surgiu a ideia de criar bonecas a partir da fibra da bananeira?
04:10 – Um sonho que eu tive quando criança, de ter uma boneca e nunca tive. Porque meus pais não podiam comprar. Então eu comecei a trabalhar com a palha seca da banana, aquela que a gente tira seca do pé; e fazia umas bonecas que pareciam os bonecos de Mamulengo, ficavam muito feias. Daí eu comecei aprimorando, descobri isso aqui através de uma senhora que veio do SEBRAE mostrar o que era uma fibra. Não disse nada que a gente deveria fazer, só mostrar as diferenças da fibra e da palha. Então, eu achei que a fibra daria para fazer a boneca dos meus sonhos, daí comecei a fazer. Me inspirei em Sinhá Moça, por conta de nossa terra, que a terra dos Engenhos, aí comecei a fazer a Sinhá Moça. Geralmente elas têm sombrinha, elas têm chapéu, tem um vestido rodado, babado, bem enfeitado. É essa minha criação e é essa a minha inspiração. Foi através das Sinhás Moças que eu comecei. Todas as minhas bonecas tem essa característica, chapéu bolsa e Sombrinha.
JOSI MARINHO – Além de bonecas, Vera Brito também já fez flores, caixas e embalagens para presentes. Tudo a partir da bananeira.
09:57 – Eu fazia caixas, porque meu pai tinha uma fábrica de doce. Então, as pessoas às vezes queria dar um presente, aí eu pegava aquela palha seca. Aí eu fiz muita embalagem para ele assim.
JOSI MARINHO – Fala um pouco mais sobre seu pai e o trabalho que ele desenvolvia para sustentar a família.
10:26 – Bil do Doce. Severino Oliveira, era chamado vulgo Bil do doce, muito antigo. Eles eram bom jardinences, vieram para aqui e fizeram uma fábrica de doce. Papai fez uma fábrica de doce e era braçal, era na minha casa, na cozinha. Eu era toda mordida de abelha por conta do açúcar e por conta dessa fábrica. Aí foi melhorando, já estava com uns 15 anos quando ele montou um fabrico assim com motor, na energia. Aí foi melhorando, mas até então a minha vida todinha de criança era dentro de casa, um trabalho braçal.
JOSI MARINHO – Imagino também o sentimento dos seus pais em saber que seu sonho era ter uma boneca.
11:23 – Porque não tinham condição, né? Eu mesmo comia biscoito quando tava doente. Tomava um guaraná quando tava doente. Só se eu tivesse doente. Eu tinha loucura para ficar doente, que era para comer essas coisas. Porque naquele tempo a gente comia era bolacha de Araruta.
E eu queria tanto comer aqueles biscoitos que o povo rico comia, que eu pensava, né, meu pensamento. E só quando tava doente era que chegavam aqueles biscoitos pra mim. Coisa de criança e coisa que você nunca esquece.
TRILHA
JOSI MARINHO – Foi tão importante a gente entender sua paixão por bonecas e como surgiu todo esse trabalho! É como se a vida lá atrás tivesse lhe preparando para esse momento. Me diga uma coisa, a senhora lembra quando fez a primeira boneca, já com toda essa questão sustentável da palha da bananeira?
14:20 – Eu acho que faz uns 25 anos, essas bonecas mais elaboradas.
JOSI MARINHO – A senhora lembra da primeira boneca?
14:33 – Lembro. Ela era uma boneca tão feia. Ela parecia com um boneco de Mamulengo. Porque era uma saia, era aquilo duro assim, cortava palha amarrava aqui em cima, colocava uma cabeça, os braços todos duros assim. O braço não tinha nem movimento, sem mão, sem blusa, sem roupa, era assim e os cabelos tudo espetado. Os cabelos tudo feio, o rosto mal pintado. A primeira boneca que eu fiz assim mais ou menos, foi para Volkswagen. Por incrível que pareça foi para Volkswagen. Eu fiz 50 bonecas da Volkswagen, porque meu cunhado era diretor da Volkswagen em Pernambuco. Aí teve um evento lá e ele pediu pra que eu fizesse as bonecas. Mas as bonecas são tão feias. Eu disse: “meu Deus, não sei como o povo ganha uma boneca tão feia dessa.” E acostumou com uma coisa feia dessa. Porque quando você gosta de fazer, você vai aprimorando. Eu tenho muito que melhorar ainda.
JOSI MARINHO – A senhora é uma artesã exigente com suas obras?
15:46 – Sou! Eu desmancho 10 vezes se eu não gostar. As vezes à noite eu levanto para desenhar o que eu pensei, em fazer no outro dia. Por exemplo, se eu quero um vestido de uma boneca bem bonita, eu acordo… pensei, aí vou botar no papel. E se não der certo eu arranco, não sei quantas vezes eu desmancho, perco palha. Não é tão fácil não, porque você tem que testar o que vai dar e o que não vai, né? Tem que saber como é que vai ficar. Então tudo isso é estudo. Por isso que eu estudo até hoje a fazer minhas bonecas.
JOSI MARINHO – Além de artesã mestra Vera Brito foi professora.
16:31 – Eu fui professora. Professora primária e ensinei vários anos em zona rural. Gostava muito dos meus alunos, e passava sempre alguma coisa de artes para eles. Depois eu vim trabalhar na Fundação do Bem-Estar Social, onde são só idosos. Eu fazia terapia ocupacional com eles. Eu fazia flores, fazia bonequinha, cantava, até a cantora eu fui.
JOSI MARINHO – Cantora? Agora a gente vai querer ouvir alguma música que a senhora costumava cantar.
17:21 – “Alecrim, alecrim, dourado que nasceu no campo sem ser semeado. Ai meu amor, ai meu amor, quem te disse assim que a flor do campo era o alecrim.” Era esse tipo de música. Cirandas, eu sempre gostei, sempre fui extrovertida nessa parte de passar para os outros alguma coisa. Eles adoravam, gostavam muito de mim. Então quando eu saí, me dediquei totalmente assim em casa, ficar mais em casa. Não pude parar. Porque eu não sei como a pessoa diz: “tô doida para me aposentar, em cruzar os braços.” Deus me livre de eu ficar sem fazer nada, a vida eu acho que acaba mais rápido não é? E você trabalhando, você não tem tempo de pensar que tá doente, que tá com uma perna ruim, tá com um braço ruim, que tá com a cabeça ruim. Quando é a noite dá sono, dorme porque já tá muito enfadado durante o dia. Isso é uma terapia, isso é um remédio. Isso é tudo para mim. Então eu não dou muito ponto para as pessoas que ficam de braço cruzado sem fazer nada.
JOSI MARINHO – A professora é aposentada há cerca de 30 anos, mas nunca parou. O artesanato não deixou. Tem até uma história curiosa sobre o casamento dela.
18:27 – eu quando me casei, o forro da cama do meu casamento eu piquei todinho para fazer flor. Porque não tinha ainda o poder aquisitivo, não dava muito para comprar material. Eu pegava o que tinha em casa. Era a roupa velha, eu fazia tudo, fazia flor, fazia o que desse.
18:52 – Eu botava em casa, enfeitava a minha casa mesmo. Depois eu comecei a vender, aí foi quando eu comecei a comprar material. Mas eu mexi com muita coisa.
JOSI MARINHO – Na sua família alguém seguiu seus passos no artesanato?
21:57 – Minha filha é artesã. Minha filha, por sinal, não tem trabalho em Portugal, ela vive de artesanato. Trabalha muito bem a parte de decoração. Faz tudo, agora só que ela lá trabalha mais em papel e também em motivos florais. Ela faz arranjos naturais, muitos recortes, faz essas flores de papel muito bonitas, faz festas de aniversário. Tanto que ela diz que não quer emprego não. Em Portugal não. Vive com isso fazer festa. Aqui ela me ajudou muito, ela chegou no dia 1 e no dia 2 ela trabalhou 12 dias sem parar.
TRILHA
JOSI MARINHO – Depois de ouvir toda a história do surgimento da paixão pelas bonecas, é claro que a gente não deixaria de perguntar o passo a passo de como elas são feitas? De onde vem os insumos? Você já notou que a professora e mestra Vera Brito fala de materiais rústicos e naturais, como a palha da bananeira. Vicência, onde ela mora, tem uma história com a banana. Vamos deixar ela explicar como ela consegue a matéria prima para as obras.
23:53 – Olhe, antes dependia de mim. Eu descia córregos, aqui mesmo atrás de casa é muito fundo, mas eu descia e botava nas costas os rolos de banana e trazia para casa. Até que tive um problema de distensão de tendão. Fui operada, fiz cirurgia, de lá para cá, eu não consegui ir mais. Mas quando eu recebo os rolos de banana… eu tenho uma pessoa que tira, mas é assim, é incerto. Quando eu peço para trazer os rolos, eu mesma vou descascar. Porque descasco todinha para só ficar essa parte de dentro. Aquela parte de fora, brilhosa, quase não me serve, só quando eu vou fazer o rosto de uma boneca é que eu uso ela. Essa daqui mesmo, aí eu uso a parte de fora, mas essa parte maleável é justamente a parte de dentro da capa.
JOSI MARINHO – E é qualquer tipo de tronco de bananeira que serve?
24:51 – É mais interessante as mais grossas, os rolos de maiores. Porque tá vendo a gente tira uma bica dessa largura, mas quando seca aí ela fica isso
JOSI MARINHO – Mestra, vamos fazer o seguinte: vamos tentar explicar o passo a passo, antes do material virar boneca? O tronco da bananeira chega aqui da forma que ele foi cortado. A partir daí, o que é feito?
25:16 – Vai ser descascado, tirado em forma de bicas. Tem maior cuidado para não quebrar. Tira em forma de bica, procura os veios dela. Vai cavando assim, vai e puxa. Aí sai aquela forma de uma bica, não sabe uma bica.. aí pronto. Tirou aquelas bicas todinhas? Vamos descascar. Descasca todinha, ela fica nessa forma aqui. Bota no sol para secar. O sol muito quente, com três dias, quatro, ela tá boa. Vai para o processo da lavagem. Fica dentro de uma bacia de um tanque a gente vai para lá, bota todinha assim enroladinha lá dentro, despeja água e passa oito dias. Nesse processo com sabão, é sabão liquidificado. Eu boto o sabão para ele amolecer, depois eu liquidifico e joga ali dentro daquela bacia. Após 8 dias que a sacarose já saiu, eu vou enxaguar em água corrente, escova para tirar aquele excesso de sabão, que tem alguma coisa, lavo todinho. Na água do enxágue que eu encho um tanque, despeja uma garrafa de vinagre, boto dentro que é para não dar fungo, esses bichinhos que tem.
JOSI MARINHO – E depois o processo continua…
26:42 – Aí vai para o sol, para o varal de duas em duas. São 100, 200 folhas dessas que eu preparo. Coloco de duas em duas no varal, depois eu vou passar ferro em cada uma para formar, é uma a uma. Borrifo e passo o ferro, depois vou enrolando, armazeno. Eu sou a formiga que trabalho no verão, para comer no inverno. Porque no tempo do inverno não tem como fazer, não tem como, porque ela pode até dar mofo. Pode até mofar.
27:25 – Depois dela toda prontinha, eu faço os rolinhos e armazeno dentro de uma caixa. Dentro até de uma dessas caixas de papelão, ou senão na caixa de plástico e deixo lá. Quando eu vou usar só é puxar e trabalhar.
JOSI MARINHO – Vamos agora para a parte da produção da boneca? Tudo começa pela cabeça, que eu já sei.
27:54 – A cabeça, eu faço uma bolinha de palha ou senão uma bola de isopor. Cubro com a fibra ou com a palha de milho, eu gosto mais com a fibra. Cubro aqui, ela é bem cobertinha aqui. Cubro com a fibra, dá impressão que é uma porcelana de tão brilhosa que ela fica. Aí vou colocar os cabelinhos.
JOSI MARINHO – É um processo criado com muita experimentação pela mestra Vera Brito. Ela criou esse método. Antes, as bonecas eram feitas com palhas de milho, mas ela inovou. Hoje esse método já foi ensinado para muitas pessoas. Com a cabeça pronta, o que vem em seguida?
29:58 – O cabelo, eu pego isso aqui, são essas fibras, esses fiapos. Eu coloco na tinta ou na anilina, o que for; cozinho, lavo e vou enrolar no palito para fazer os cachinhos.
30:23 – Todo o processo da boneca é feito manual. Aí faz os cachinhos, é o palito que faz esses cachinhos, enrola a fibra nos cachinhos.
JOSI MARINHO – Mestra, como a senhora descreveria suas bonecas para as pessoas que estão nos ouvindo?
30:57 – Ela tem o pescoço, que justamente eu coloco um arame ou um palito aqui dentro do arame, aqui dentro do pescoço. Aqui eu cruzo com um arame coberto com a palha, que justamente vão ser os braços. Daqui eu enrolo, passo uma fita assim, passa uma fita de palha de banana de fibra. Aí passo, amarro aqui. Aí vou cobrir o bracinho para dar volume, é justamente isso aqui. Aí cubro o braço e dá volume no braço. Aí coloca a mãozinha, aí vou vestir,
DESC – O processo criativo de uma artesã é bem único e difícil de explicar em palavras. Mestra Vera Brito faz uma espécie de esqueleto com arames. Sabe aqueles bonecos que a gente desenhava na infância, de palitinhos? É quase assim… Um arame é o tronco, outros formam as duas pernas e outros, os braços. Depois ela dá volume a essas partes do corpo cobrindo os arames.
31’41’’ – Depois de feito essa parte, vou vestir. Elas têm meia, sapatinho, tem calcinha, tem tudo. É completa. Aí depois que eu faço essa parte do busto, que eu boto peitinho tudo nela, depois da parte do busto, eu coloco uma sainha, uma armação, aí vou trabalhar em cima da armação.
JOSI MARINHO – As roupas também são um espetáculo a parte. São rendas lindas. Na verdade se chama guipir … Uma renda de fundo vazado e bem encorpada.
33:15 – Bem, guipir para quem não conhece é um trabalho feito até às vezes com linha. É um tipo de um tecido. E aqui eu pego essa faixa que ela é branquinha, eu boto no cloro a faixinha, e vou cortar com o cortador para formar esses desenhos, que justamente forma o guipir. É um cortador de papel adaptado para cortar essa palha. Ele tem que ser no ferro muito quente, que é para deixar a textura da folha como se fosse um papel. Daí eu vou passar no cortador. É todo manual, isso é de pedacinho em pedacinho, essa largura aqui. Aí vai emendando pedacinho por pedacinho, até fazer uma saia, até fazer um trabalho que eu quiser.
JOSI MARINHO – E a palha de milho… Aquelas que a senhora usava na infância …. Elas ainda servem? Em que ocasiões são usadas?
35:00 – Nas flores, eu gosto muito porque ela dá um colorido. A palha do milho ela pega anilina direitinho, e a palha de bananeira não fica colorido bonito. Pode pegar a tinta, mas não pega todas as cores não, e essa colorida ela pega na palha de milho.
TRILHA
JOSI MARINHO – As bonecas produzidas pela mestra Vera Brito possuem todo tipo de tamanho. Tem umas mais pequenas e outras nem tanto. Mas o público tem um tamanho preferido?
36:47 – Essa é 35, 40cm. Por sinal eu vou fazer menor. Porque tem mais vendagem. Ela é mais vendável. Essas muito grandes, só se for para colecionadores, mas para suvenir, para lembrança, para outras coisas, ela tem que ser de 20 ou 25cm, no máximo 30.
JOSI MARINHO – Apesar de ter todo tamanho, noto que a senhora prefere as bonecas com 30 ou 40 cm.
37:18 – Eu acho essa assim, um carro chefe. As pessoas quando veem por exemplo, na Fenearte, elas ficam assim em cima. Então, a visão é logo para elas, mas eu estou pensando em mudar para um tamanho menor.
JOSI MARINHO – As bonecas menores são vendidas a partir de R$ 20. Mas tem obra de todo valor. As bonecas maiores podem chegar a R$ 200.
38:07 – Uma boneca com a sainha cheia de ‘nego bom’. Porque já que é bananeira, eu sou liberada para vender o nego bom dentro das minhas bonecas. Também faço uns anjinhos pequenos. Tem anjinhos também de R$ 10, R$ 15, anjinhos pequenininhos, mas a média das bonecas justamente de R$ 20, de R$ 25, nessa faixa aí.
JOSI MARINHO – É um trabalhão! Desde o tratamento com a matéria prima, a montagem da boneca, a decoração e a finalização. A senhora já parou para contar quanto tempo leva a produção de uma boneca?
38:48 – eu dedico o dia todo, porque já que eu estou em casa sem fazer nada. Tirando essa parte que eu faço o almoço, uma coisa e outra, é aqui direto. Eu não durmo durante o dia. Eu faço aqui no terraço, porque eu trabalhava lá dentro, numa garagem, mas eu ficava muito isolada do mundo, eu achava. E aqui passa um, passa outro. Eu gosto muito de conversar e gosto muito de falar. Aí eu converso com um, converso com outro… trabalhando. Mas ali eu me sentia muito isolada.
TRILHA
JOSI MARINHO – Para que o trabalho saia perfeito, a mestra conta com uma ajuda essencial. O esposo dela. Seu José Ulisses tem 78 anos e é caminhoneiro aposentado. Ele é o responsável pela higienização das palhas da bananeira, pela raspagem das fibras. Ele lava tudo e coloca para secar.
40’16’’ – ele é muito perfeccionista e eu não sou não, mas ele é muito perfeccionista. Tudo dele é muito organizado. A minha organização é dele. Eu não sou muito não. Enfim, ele tem uma função muito importante.
TRILHA
JOSI MARINHO – E como aquela menina que no passado tinha o sonho de ter uma boneca… Que brincava com caroço de manga e espigas de milho e que começou a criar as próprias bonecas, decidiu que era hora do mundo conhecer esse dom? Como a senhora percebeu que suas bonecas poderiam lhe render dinheiro?
40:57 – É porque, primeiramente, você quando faz um trabalho, você quer mostrar. Você mostrando, vai ter alguém que diga eu quero. Então daí começou o interesse de fazer para vender. Porque tanto é reconhecido o trabalho, como também financeiramente você tem um retorno material, uma coisa e outra. Porque eu compro cola, eu compro tinta, eu compro arame, compro palha. Hoje eu compro palha. Antes não, mas hoje eu já compro palha. Então tem um custo. Então eu acredito que se você produz muito e não tem a quem vender, não é interessante, não é? Como é que você vai repor o material, os custos que tem?
JOSI MARINHO – Boa parte das suas obras é vendida na Feira Nacional de Negócios do Artesão, a Fenearte? Notei que sempre que pode a senhora fala da Fenarte. Afinal são mais de 20 anos participando, certo?
41’56’’ – A Fenearte pra mim é uma porta, feira de negócios. É a maior feira da América Latina, teve um fluxo de 35 mil pessoas quase diariamente. De 30 a 35 mil pessoas. Você imagina, quantas pessoas não vão nessa feira? Tem pessoas que me elogiam, isso para mim… a minha autoestima vai lá para cima. Pessoas que beijam até minhas mãos, que são santas. É tão engraçado, é tão gratificante ficar ali. Eu acho que se me tiraram daquela feira, tiram um pedaço de mim.
42:36 – Eu amo quando eu chego lá, fico louca. Para mim é uma satisfação imensa. Ele diz assim: “mas você espera o ano todinho?” Eu digo que espero o ano todinho por essa feira, para mim é o maior lazer da minha vida. Se eu chegar da feira e não trouxer nada, mas eu me sinto realizada porque participei dessa feira. Já fui pra Brasília, já fui para Aracaju em feira, mas não é satisfatória como essa daqui. A daqui é demais.
JOSI MARINHO – Suas bonecas já ganharam o mundo? Por onde tem uma obra bonita como essa?
43:12 – Olha, muitas pessoas levam para presente. Para o Colorado… Colorado, eu tenho pessoas que vendem lá mesmo. Tem para Suíça, pessoas que levam pra Suíça. E países até que eu não conheço, que as pessoas chegam, compram, dizem: “eu vou levar não sei para quem, não sei para quem”. E aqui, no nosso Brasil, ela é conhecida no Rio, São Paulo, Aracaju, Natal, tem vários estados aqui.
43:56 – (risos) Agora deixe eu lhe dizer uma coisa. Quando eu vendo uma peça, que eu quero muito bem, que me deu muito trabalho, meu sentimento é muito grande. Eu vendi uma noiva esse ano, toda de vestido de renda, que eu fiquei com vontade de chorar na hora que ela saiu. Foi para o Rio de Janeiro. Eu tenho um sentimento maior do mundo e amo o que eu faço. Se eu pudesse eu tinha milhões de peças aqui, mas a gente que faz, não pode se apegar a tanto. Mas ninguém pode dizer que uma peça dessa é feia na minha vista. Pode dizer fora, mas vai me magoar muito se disser que não é uma peça bonita. Pode achar feia, mas não me diga não, por favor, porque vai me doer muito. Antes, eu fiz uma santa, Nossa Senhora de Fátima, com 1,40m . Aí vendi para um escritório. Isso faz uns seis anos. Chorei de morrer na feira. “ – Mas o que foi que houve?” Eu disse: “vendi a santa”. “ – E você vai ficar triste porque vendeu a santa? Você não trouxe para vender?” Eu disse: “trouxe, mas o meu sentimento é muito grande em desfazer dela.” Eu fiquei com muita dó, ainda hoje eu lembro dessa santa, era linda, linda.
TRILHA
JOSI MARINHO – O mais legal de toda essa história é que esse conhecimento não ficou só para a professora e mestra Vera Brito. Ela fez questão de repassar e ajudar outras pessoas através da arte.
46:15 – Todos os trabalhos eram remunerados, Sebrae, ONGs, Banco do Nordeste, município. Por onde eu dei o curso era remunerado, isso também é importante. Se você vai passar alguma coisa e você vai receber também é importante. E também passar para as pessoas um pouco do que você faz, também é muito bom. Eu sempre me dei muito bem nos cursos que eu faço, com muita alegria, com muita amizade. Fiz muita amizade por esse mundo que eu passei: Primavera, Lagoinha, Cachoeirinha, Panelas, Cupira. Por onde eu andei por aqui… Orobó, aqui em Vicência mesmo, Murupé, vários engenhos onde tem bananeira. E para mim é satisfatório demais.
JOSI MARINHO – Em 2022, a mestra Vera Brito recebeu o título de Patrimônio Vivo de Vicência no ano seguinte foi eleita Patrimônio Vivo de Pernambuco.
47:18 – É a maior prova de reconhecimento de tudo eu fiz até hoje.
47:49 – Olhe, graças a Deus, eu sou uma pessoa muito reconhecida, muito cheia de amizades. É como eu disse a você, eu tenho satisfação pelo que faço, de passar e de fazer amizades com todo mundo. A minha vivência, que eu nasci e me criei aqui em Vicência. Então para mim todos são irmãos. Eu com essa idade que tenho, não me sinto com 74 anos. Eu agora que eu tenho 50, isso para mim é importante .Eu devo ao que eu faço, devo a esse trabalho. Problemas todo mundo tem, com marido, com filho, mas são coisas que vão passando e a gente não vai se fixando naquilo ali não. Porque isso aqui é uma terapia, isso aqui é tudo. Então Vicência foi um grande berço para mim. Primeiro, porque me inspirou nas “Sinhá Moça”; e segundo, porque a matéria-prima é em abundância. Porque nós somos de zona de bananeira. É o segundo produtor, primeiro Macaparana, São Vicente, e segundo Vicência. Apesar de ser uma zona Canavieira, mas tem muitas bananas nos distritos.
JOSI MARINHO – Mestra, sua história é inspiradora. A senhora é um exemplo de vida. Foi muito importante para nós contar um pouco de tudo que a senhora viveu e como a senhora chegou até aqui.
49:37 – Eu queria que as pessoas tivessem amor também a arte. Arte é uma coisa que releva muitas pessoas. Arte é… eu não sei nem definir, porque o que eu sinto é uma vida de sossego. Arte dá um sossego a uma pessoa. Não tem tempo de estar pensando, então que as pessoas se dediquem a fazer alguma coisa, pode ser crochê, pode ser bordado, pode ser isso mesmo que eu faço, pode ser marcenaria. Tudo, tudo, tudo, que se faz em arte é gratificante demais e faz bem à saúde, faz bem a você mesmo. É uma coisa que lhe engrandece.
Se algum dia eu for, quer dizer todo mundo vai, eu fiz o que eu gostei na vida. Isso aí foi muito importante para mim. Tudo que eu gosto de fazer é isso aqui.
NÃO PRECISA GRAVAR
ENCERRAMENTO
JOSI MARINHO – E a gente também agradece a você que chegou até aqui com a gente. É assim que termina o quinto episódio da Temporada Especial do Podcast Nossa História, Nossa Memória sobre os patrimônios materiais e imateriais da zona da mata
Nesta temporada, o projeto conta com apoio da Universidade de Pernambuco, Campus Mata Norte; do Ponto de Cultura Poço Comprido; Patrimônio Vivo e Ponto de Cultura Banda Curica; Patrimônio Vivo e Ponto de Cultura Banda Revoltosa; da Associação dos Maracatus de Baque Solto de Pernambuco, que é patrimônio vivo e ponto de cultura. São parceiros, ainda, o Ponto de Cultura Bloco Rural Caravana Andaluza; Associação dos Mamulengueiros e Artesãos de Glória do Goitá; o Museu do Mamulengo de Glória do Goitá; Banda Musical Euterpina de Timbaúba, patrimônio vivo de Pernambuco.
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– Na equipe deste podcast João Paulo Rosa com a trilha sonora.
– O jornalista Gedson Pontes com roteiro e montagem.
– A produtora cultural Crislaine Xavier com a audiodescrição.
– Alisson Santos com a gravação.
– Videomaker: Julio Melo.
– Designer: Murilo Silva.
– Web designer: Saulo Ferreira
– Apresentação e produção da jornalista Josi Marinho.
– No nosso canal do Youtube, nossos episódios estão traduzidos em Libras – Língua Brasileira de Sinais pela tradutora Ewelyn Xavier
– Coordenação geral e reportagem do jornalista, documentarista e produtor cultural, Salatiel Cícero.
A gente te espera no próximo episódio !!!! Até lá!!!